domingo, 18 de setembro de 2016

Do primeiro dia de Escola e porque a memória é traiçoeira.

Adormeceu e acordou tranquilamente, sem qualquer sinal de nervosismo. Mochila nova às costas e Vs de vitória para a fotografia. Saímos de casa muito cedo e fomos pôr o irmão à creche. Fizemos grande parte do caminho a pé e só aí me apercebi da possibilidade de algum nervosismo porque nos apertava a mão com muita força, com o braço contraído. (E logo ele que raramente dá a mão por livre e espontânea vontade...) De qualquer das formas sentiamo-lo seguro e confiante e por isso lá íamos nós também, seguros e confiantes.

Chegámos. Cumprimentámos caras conhecidas. Aliviados como os miúdos por, enfim, termos ali alguém que... "Olá, estamos juntos nisto! Sim, é uma parvoíce, mas ainda bem que também estão aqui."

Entrámos na sala.

- "Aonde te queres sentar, filho?"
- "Lá ao fundo!"

Pois que assim seja.

O amigo T. que veio com ele da outra escola sentou-se ao seu lado. 

Primeira tarefa: Numa cartolina partilhada com o colega de carteira fazer um desenho sobre o começo da escola. 

"Espectáculo! Começamos bem...", pensei eu. É que o Jr. detesta desenhar. Detesta. Não é uma questão de não saber, de não ter jeito. É uma questão de sofrer quando tem de o fazer. É castigo. 
O amigo T. começou logo, todo animado: Um barco enorme, uma bandeira de Portugal, nuvens, Sol, meninos, meninas, gaivotas, peixes, tudo, tudo, tudo, um espetáculo de luz, cor e muita animação. 
O Jr.? O Jr. escreve o seu nome com letra "à mão" como a avó lhe ensinara nas férias lá num cantinho, lá da metade dele da cartolina. Depois "desenha" (gatafunha?) um campo de futebol, duas balizas, dois jogadores e uma bola. Num espaço equivalente ao de um cartão MB. É nesta altura que olha em redor. É nesta altura que vem ter connosco, de olhos rasos de lágrimas. Que o desenho dele estava feio. Que era o mais feio de todos. Que queria fazer tudo de novo. Que era o pior. E nada, nada que me surpreendesse.

Lá fui com ele... Comecei por lhe dizer que não tinha motivo para se sentir assim, que o desenho dele estava muito lindo. Mas depois ele disse-me para eu parar de mentir. E eu parei.

- "Então, pronto, diz-me lá... O que queres desenhar?"
- "Uma cidade!"

Uma ci-da-de!!! Pois muito bem... Não, o meu filho, artista nato e com um desenvoltura notável no que ao desenho livre concerne, não queria desenhar um carro. Ou uma casa. Ou meninos ao lado uns dos outros. Ou um jardim com muitas árvores. Não. o meu filho, e o seu lendário jeito para o desenho, queria desenhar uma cidade:

- "Um prédio?"
- "Não. Uma cidade completa! Muitos prédios, carros, pessoas, um jardim e um aeroporto..."

Respirei fundo e sugeri-lhe que desenhasse "um arranha céus muuuuito alto"... Para ocupar grande parte da cartolina, claro. Depois o pai desenhou uma árvore e um avião. Quer dizer, esboçou, que desenhar desenhar, assim mesmo mesmo desenhar (que é como quem diz passar por cima) foi o Jr., que é só ele empenhar-se e faz desenhos mui lindos. Não. Mentira. Não faz. Não dá. Isso é o que eu lhe digo, para o estimular, para lhe alimentar a auto-estima e isso. Depois de muito esforço, jogo de cintura e "Yes you can", qual "Uma Aventura com Gustavo Santos", lá terminámos a nossa hercúlea tarefa! Agora "só" faltava pintar! E lá estava o Jr. a cumprir tal tarefa, como que a cumprir pena, com a mão esquerda a segurar a cabeça e com cara de "Porquê??!!! Mas porquêeee????"

Para o animar:

- "Estás a ver o relógio, filho? Já só faltam quinze minutos para o intervalo... Depois já podes ir brincar com os teus amigos"
- "Lá para fora?"
- "Sim, lá para fora, para o recreio. Mais um bocadinho e já podes brincar à tua vontade!"

Lá continuou, mais animadinho... Quer dizer... Tão animado quanto possível, assumindo que estava em modo desenho. 

Nisto começa a chover... Copiosamente! Prevejo o que aí vem e adianto-me:

- "Olha filho, se calhar já não vai dar para irem para o recreio..."

- "Não?! Então vamos fazer o quê?"

Nem de propósito diz a professora:

- "Bom... Está a chover... Quando chove não dá para irmos para o recreio... Ficamos por aqui pela sala... Descontraidamente.... A desenhar ou assim..."

Eu já nem ouvi mais nada... Olho para o Jr. que revira os olhos e me olha como que a pedir socorro! Olhos rasos de lágrimas. Outra vez.

E é neste estado de aflição que tenho de o deixar. 
E num cinismo digno de registo, com a maior descontração e de sorriso nos lábios: "Um beijo e um queijo, meu amor.  Vai ser muito fixe, vais ver! Até logo. Vai ser muito fixe! Que sorte... Tantos amigos novos... Tchau-Tchau! Diverte-te! Fixe, hã!... Vai ser muito fixe!!!"

Saio com o coração num punho. Conto cada minuto até o ir buscar. Antevejo mil e um cenários... Uns, a grande maioria, com olhos inchados e lágrimas, outros com sorrisos e muita alegria, mas todos com muito drama e emoção. "Bom, está quase na hora... Quer dizer, às tantas ainda é cedo." Era cedo. Ponho-me a caminho de qualquer das formas. Passo os portões. Toca. E de repente... 

Lá estava ele diante de mim. Triste? Não. Abatido? Não. Radiante? Também não. Então? Super-tranquilo! Com um ar de... Oh well, another day in the office. Eu confusa... "Mas, mas... Eu tinha-te deixado tão... coiso!", mas rapidamente... "É que não quero nem saber... Tens fome?" E fomos lanchar. Bolos! E depois fomos buscar o irmão. E depois foi o treino de futebol. E depois banho. E depois jantar. E depois vinte minutos de televisão, lavar os dentes, xixi e cama.

No dia seguinte mais do mesmo. Tudo igualmente tranquilo.

Amanhã é outro, o terceiro, dia e eu não me importava nada que isto encarreirasse assim.

*O meu filho não chora fora de casa. Fica com os olhos marejados de lágrimas, mas limpa-os com as mãos e controla-se. Levanta a cabeça, respira fundo e segue como se nada fosse. Geralmente só eu e o pai é que nos apercebemos do pânico momentâneo. Ainda hoje se esbardalhou de uma torre de escalada. Magoou-se na cara. Muito. Vinha muito aflito, que "se houvesse uma casa de banho para molhar a cara é que era mesmo fixe." Vinha todo vermelho e com as mãos a tapar a boca.  Mas não chorou. Lágrimas a escorrer pela cara e gritos? Nop! Não consta do cardápio fora de portas, não.

21 comentários:

  1. Compreendo perfeitamente o Jr.mas felizmente há outras matérias na escola para além do desenho.
    A minha filha é bastante boa aluna, não tem dificuldade nenhuma em disciplinas como matemática, física ( que para mim é uma ciência oculta) ,química, mas desenho....desenho é uma verdadeira nulidade. É tão "inapta" que era a única disciplina em que eu, que também não sou uma habilidade, a ajudava. Felizmente está no 10ª ano e já não tem desenho.

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    1. A questão é que neste primeiro ano (e no ano anterior também já tinha sido) o desenho é tremendamente valorizado, até porque é a forma que eles têm de aprender a pegar num lápis e a manejar o dito. Facilita-lhes a aprendizagem da escrita. Ele bem sabe que aprende outras coisas, mas esta parte do desenho está em toda a parte e isso mata-o de desgosto... :D

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    2. A minha filha também detestava as aulas de desenho, nunca gostou de livros de colorir mas a pouco e pouco foi melhorando. Com o Jr vai acontecer o mesmo.

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    3. Ele gosta de desafios? Se sim experimenta comprar aqueles livros que em vez de desenhos têm tracejados, alguns com números que dão no final um desenho.

      O meu também sempre gostou de desenhar (isto é, riscar) mas pintar? É como o diabo da cruz... e mesmo a desenhar só gostava de desenhar carros (2 rodas e um rectângulo em cima).
      A única forma de o colocar a fazer "desenhos" era com estes cadernos de tracejados ou de desafios: "descobre que animal se encontra aqui", " tenta fazer com que o João chegue à casa da avó sem tocar nos muros", etc.

      (Fiquei com o coração apertado pelas lágrimas nos olhos...)

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    4. Sim. Já andei a ver coisas desse género e também fiquei a achar que talvez resultasse. Vamos ver...
      (Obrigada! :))

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  2. se a tranquilidade for uma constante, está encontrado o padrão. tranquilidade forever. um dia de cada vez.
    boa semana, NM.

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    1. Obrigada e igualmente, mia!! :)

      (Ele começou agora escola nova, atl novo, natação nova e futebol novo. Deve ter conhecido mais de 100 pessoas novas em duas semanas. Alterou completamente as rotinas. Eu estava à espera de alguma desordem naquela cabeça, mas até ver.. Tudo tranquilo, tudo na maior descontracção... A ver, a ver...)

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    2. Que bom!

      (Com o meu está a ser muito, muito difícil. Hoje ficou a chorar na escola, também não é menino de chorar fora de casa, e saí eu com os olhos em lágrimas).

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    3. Oh, que aflição!!! Dizem que é só os primeiros dias. Também vi meninos a chorar lá na escola do Jr. A ver se passa rápido.
      Muita sorte para aí, de coração!

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    4. Obrigada.

      Ao fim do dia entrou em casa a cantar e dançar. Trazia um autocolante ao peito de bom comportamento :)
      Hoje já foi bem (ajuda saber que o vou buscar para almoçar comigo). Vai melhorar certamente :)

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    5. :))))

      (Daqui a uns tempos está-te a pedir para almoçar lá com os amigos.)

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  3. Ainda bem que não é só aqui que desenhar e pintar são uma seca! Felizmente ao terceiro dia começaram a aparece tarefas para rodear e ligar números... Esperemos que continue a haver trabalhos mais diversificados e que o entusiasmo pelos trabalhos escolares seja crescente!

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    1. a, e, i, o, u! Trabalhos de casa pela primeira vez! Ah pois.. :)

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  4. Boa sorte, NM! Também a minha filha este ano foi de coração bem apertado! E eu também...
    Este ano fizémos um grande ajuste nas nossas vidas e mudámos os miúdos de escola (de Lisboa para a margem sul, onde moramos, para escolas mais pequenas em ambiente mais acolhedor e mais comprometidas com os seus alunos...1º e 5º ano). Se para o mais velho a mudança foi "na boa", para a pequena que ia para o 1º ano foi terrível. Deixou para trás todas as referências que tinha (educadora, amigas, avós, espaços físicos) e teve de enfrentar as "feras" sozinha!
    E não, não é nenhuma parvoíce gostar de encontrar caras conhecidas mesmo em adultos! Afinal todos gostamos das nossas referências! :) Por agora, está tudo mais sereno!

    Boa continuação por aí! :)

    Carla

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    1. Espero que as coisas estejam mais calmas por aí, Carla.
      Eu também preferia que ele frequentasse uma escola mais pequena. Mas não deu, não teve vaga.

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  5. Revi-me no teu filho.
    Também no meu primeiro dia tive que desenhar.
    Eu e desenhar não há compatibilidade alguma.
    A folha era gigante e eu que queria fazer tudo muito bem, comecei por fazer umas nuvens muito pequeninas no topo da folha, e jeitosinhas.
    Pois que acabou o tempo e não havia acabado as nuvens, estava só a meio da folha.
    Imagina a minha aflição!
    Tudo a correr bem :)

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    1. Que engraçado... Tirando a parte do "jeitosinhas" é engraçada a semelhança das histórias. :)
      Obrigada.

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    2. Tentei fazê-las jeitosinhas, aos olhos de outra pessoa provavelmente não seriam :D Mas tentei muito.
      Percebo muito bem o Jr., apesar dos anos que nos separam. Nunca me esqueci desse dia, o dia em que tinha que desenhar, no 1º dia, e só fiz x nuvens que nunca chegaram ao fim da folha. Os meus colegas tinham desenhos fulgurantes a ocupar a folha gigante. Não fiquei traumatizada, nem pensar. A minha Senhora Professora(tinha que assim ser chamada) gostava muito de quem sabia desenhar, mas desdenhava o resto.
      A única vez em que fui elogiada em "desenho" foi quando tínhamos que colorir pinguins. Eu, fui fiel à sua cor, branco e preto. Os meus colegas pintaram os ditos como apetecia.
      Tudo ficará bem, eu aqui ando a tratar de pessoas e a fazer diagnósticos, sem trauma algum ;)

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