sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Neste último ano…

Estive um semestre grávida. Estive internada cinco dias com uma pneumonia. No dia em que me foi dada alta os meus pais fizeram mais de 200 km para me ver (pedi-lhes para não virem antes porque não queria que me vissem numa cama de hospital). Nesse dia a minha mãe, ictérica, deu entrada nas urgências, quando uma semana antes parecia irradiar saúde. Passados dois dias a minha mãe apresentava-se no hospital para ser internada, onde ficou um mês. Na primeira semana não a pude visitar, por estar em casa convalescente. Nessa semana fiz um trabalho que foi irrepreensivelmente avaliado. Recebi sozinha, por um interno, a notícia de a minha mãe ter um tumor terminal. Desmaiei. Recebi a notícia de não ser possível operá-la e de tudo se resumir a (poucos) meses. Desmaiei. Movi mundos e fundos e contactei equipas médicas de todo o mundo. A opinião era geral: a única hipótese de sobrevivência da minha mãe era a cirurgia e essa hipótese não lhe estava a ser dada pela equipa que a tinha a cargo. “Li” “perfeitamente operável” em português do Brasil, em espanhol, em inglês, em francês e em alemão. Vi outra equipa médica de Portugal querer muito operar a minha mãe por acreditar que a podia curar. Vi a primeira equipa mudar de ideias diariamente, só porque sim, só porque os filhos da minha mãe se sabiam mexer no meio e, afinal, tinham conhecimentos e ai que chatice que ninguém os tinha avisado e olha agora que ainda iam ficar mal vistos. Vi uma equipa médica de referência mentir. Vi a minha mãe “esfarrapar-se” com a comichão. Pus-lhe litros de creme na pele e passei horas a aliviá-la com uma ventoinha a pilhas comprada no chinês. Li uma nota de alta mentirosa. Vi que há vidas e vidas, que umas vidas valem mais que outras e que nunca, mas isso é que nunca, se pode ficar mal visto perante os pares. Tive vontade de bater, de bater muito, em pessoas que tratam de pessoas como eu lido com os números.

Dormi muitas vezes de mão dada com o meu pai. Chorei muito. Passei muitas vezes a mão na minha barriga de 20 semanas e pedi desculpa ao meu filho, mas que eu tinha de fazer coisas que bem sabia que não devia fazer, mas que não era só a vida dele que dependia de mim, se calhar a da sua avó também. Vi a minha mãe morrer, muito nova, a 600 km de casa com uma septicémia num procedimento radiológico pré-operatório tido como simples. Comprei a roupa com que a minha mãe seria enterrada na loja de um hotel. Vi o meu pai chorar desesperado e desamparado. Muitas vezes. Falhou-me o chão. Muitas vezes. Senti a amizade que tinha por uma pessoa fugir-me por cada poro de pele… Não, não me compadeci nem solidariezei… Simplesmente, e friamente, desamiguei… E juro que senti aquela amizade fugir-me do corpo.

Ouvi a minha obstrecta dizer-me que eu corria o risco de perder também o meu filho, agora não… agora não dava para falhar. Nós na corda bamba e eu tinha de me equilibrar, o meu bebé tinha 23 semanas de gestação e dificilmente sobreviveria se eu me desequilibrasse. Com o stress pus uns bons 20 kg no lombo. Não consegui explicar ao meu filho mais velho o que tinha acontecido à avó, que ele via sempre a sorrir. Acordei muitas vezes a chorar mas depressa me enxuguei porque nesse momento não podia. Aprendi a fazer ponto de cruz para dar um enxoval decente ao bebé tal como teve o irmão pelas mãos de fada da minha mãe. Aprendi a fazer rissóis porque em nossa casa só se comem rissóis caseiros. Comi a última marmelada feita pela minha mãe.

Antes de tudo isto ouvi alguém perguntar “O que é que podemos fazer para a termos cá a trabalhar connosco?”. Aceitei sair da minha zona de conforto durante um ano e arrisquei. Entretanto engravidei. Quiseram-me contratar na mesma, ainda que grávida e a parir a meio do contrato. Sem me conhecerem de lado nenhum facilitaram-me a vida de uma forma indescritível e que jamais esquecerei. Antes disso, e noutro lado, pagaram-me por metade. Trabalhei como nunca na vida. Seguramente mais de 12h por dia, dia após dia, durante uns bons quatro meses. Pedi ajuda ao meu marido para cumprir prazos. Confiei. Pagaram-me por metade e assenta-me que é uma beleza a carapuça de ser mais papista que o Papa. Já depois disso, e num concurso público, fartei-me de compadrios descarados. Protestei por intermédio de um advogado. Miraculosamente a minha situação resolveu-se. Ele há coisas que agoniam…

Decidimos investir as nossas poupanças na compra de um apartamento que, felizmente, já temos alugado. Trocámos de carro.

Nestes entretantos achei-me depressiva. Fui consultada por uma psiquiatra que me disse que não… Que estaria a viver o meu luto e a lutar pelo filho que carregava.

Cá por coisas minhas lutei por uma cesariana. Tive uma cesariana num hospital público. Tive um medo atroz de o meu filho bebé ter uma má formação (as análises de despiste não tinham valores propriamente famosos). Tive o meu bebé de termo. Um bebé calmo e aparentemente saudável, um bebé guerreiro.

Por toda a complacência que tiveram comigo trabalhei durante toda a licença de maternidade. E foi duro… Muito duro!

Apercebi-me que o meu filho mais velho, só com quatro anos, tem pavor a falhar e que carrega nos ombros uma responsabilidade tremenda. Chorei quando há três semanas, desesperado, ele começou a gritar porque chamou pela avó paterna e esta não lhe respondeu (porque não ouviu). Gritava desesperado o pequeno que bem sabia que ia ser como com a avó Lina, que bem sabia que já não a voltava a ver esta avó…

Agora… Já organizei a minha vida e as minhas rotinas, mas sinto-me uma bomba relógio. Ainda não sei bem o que sobrou de mim e sinto que nunca mais dormi sossegada... Não me apaziguei com a morte da minha mãe. Trago-a sempre, mas sempre, no pensamento. 

Agonia-me entregar o meu bebé às mãos de uma educadora (ainda que uma querida amiga) já daqui a uns dias.

Mas olho para a minha família e sinto um orgulho tremendo. Mantivemo-nos! O meu pai manteve-se e o bebé gargalha sempre que o irmão se aproxima. 

Ainda agora… Procuro uma casa maior. Quero um jardim! Sim, continuo a fuga em linha recta, qual rinoceronte enraivecido que acha que pode tudo.

(…)

Do c@r@lh@... Foi um ano do c@r@lh@!!...

*Os comentários? Não me levem a mal mas neste momento sinto-me nua… Pensei muito antes de escrever isto aqui… É de uma exposição tremenda, do mais íntimo que tenho. Não saberia o que vos haveria de responder!